
Que tal falar um poco sobre Jose Saramago,inclusive já citado no meus livros preferidos,e o filme tbm
"Um motorista, parado no sinal, subitamente se descobre cego. É o primeiro de uma 'treva branca' que logo se espalha incontrolavelmente. Resguardados em quarentena, os cegos vão descobrir reduzidos à essência humana, numa verdadeira viagem às trevas".
Esta é descrição inicial do livro Ensaio sobre a Cegueira, livro de José Saramago publicado em 1995 e ganhador do Prêmio Nobel de Literatura. Em setembro de 2008 foi lançado BLINDNESS, filme do brasileiro Fernando Meirelles baseado na obra do escritor português. Pode parecer impossível, num primeiro instante, analisar obras literárias e suas adaptações cinematográficas sobre o prisma do tarô. Impossível, no entanto, é deixar de fazer associações e encontrar pontos comuns que dialogam com os sentidos – principalmente com a visão, a primeira e a mais importante necessidade dos que se propõem a mergulhar no âmago das cartas.
Comecemos refletindo. E se todos os personagens das cartas forem cegos? Tentadora proposta: Na carta d´O Sol, duas pessoas se tateiam para constatar que se conhecem. Mãos errantes. O Eremita, obviamente, é aquele que movimenta a bengala a fim de saber por
onde pisa. O Papa não vê aqueles que abençoa, percebe? Não imagina onde estão os tais fiéis e nem nota a mão de um dos cegos, estendida aos seus pés. O auriga d´O Carro é guiado pelos animais sabe-se lá para onde e até quando.
Um ensaio sobre a cegueira nas cartas do Tarô
Texto de Leonardo Chioda
in www.cafetarot.com.br
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Após a explosão d´A Torre, os sobreviventes apalpam o solo para, talvez, encontrar abrigo dos destroços esféricos. A mulher banhada pel´A Estrela não saberia, portanto, que verte as ânforas em lugares impróprios — mas se todos estão cegos, ou melhor, são cegos, qualquer lugar é oportuno. A terra não é de mais ninguém, é de todos. Eis o paradoxo (do) invisível. A fome aumenta progressivamente e com ela a sujeira e o medo. Daí as andanças erradas d´O Louco, todo maltrapilho, seguido por um cão — esses sim, os animais, continuam vendo — dando espaço a qualquer conforto até que a chuva possa ser vista pela pele e as orações aos céus, clamando pela cura, possam ser ouvidas por alguma coisa, como no dia d´O Julgamento. Enxergam, sim, os cegos.
Essa viagem às trevas, talvez providenciada pelos olhos atentos do Diabo, seja uma oportunidade de resgatar a essência de cada um. O mar de leite é como o papel em que esboçam reis, luas e bufões. É nele que são reduzidas as pessoas, as coisas os mundos e suas visões. Sem nomes. A leitura se dá pelo tato e pela audição. Aprimoramento de sentidos em meio à miséria, ao vazio, ao alheio particular. Aliás, "quantos cegos são necessários para fazer uma cegueira?" O contágio é a forma de atingir a todos os humanos, um requisito imposto e aceito sem discussão à nova forma de vida e visão de si. E do Mundo, obviamente. Aqui se vê, o motivo de todos os protagonistas — da obra e do tarô — permanecerem de olhos abertos em direções distintas, independente da seqüência ou cena escolhida. Cada arcano olha. Nós reparamos. A Justiça nos olha e O Sol nos ofusca, jogando por terra a convencional escuridão. O branco é denso e uniforme, metáfora da iluminação súbita do homem e sua atitude a partir dessa novidade. Ambos os arcanos encaram quem se dispõe a manusear o baralho. Mas nos cega ou nos clareia a visão do enigma?
“O mundo está aqui dentro.” Aprisionados num manicômio — rapidamente associado às masmorras perturbadoras do 15º arcano ou mesmo a sinistra construção do próximo, a Casa Deus, espreitada por soldados do governo — a tela clara seria, então, um despir de máscaras do homem que, mesmo sem ver, ainda mascara sua desumanização, sua real cegueira. Despida, aparece brutal, animalesca. A narrativa tece os limites da necessidade, da paciência, da racionalidade.
A Torre de Aleister Crowley e Saramago, aquele que tudo vê.
O elenco não podia ser melhor. Gente branca como Julianne Moore e Mark Ruffalo, negra como Danny Glover, oriental como Sandra Oh, trabalhador comum, vivido por Gael Garcia Bernal e até prostituta, na pele de Alice Braga, estrelam a variedade de raças, idades, ocupações, nacionalidades e classes sociais. Variedade que deixa de existir quando a onda precipitada do mar de leite bate em suas vidas. Tais diferenças mostram que o inexplicável alcança a todos, aproxima e iguala as coisas. As pessoas. Boa sacada. Tanto do gênio português quanto do diretor fiel, já que no livro o leitor é inicialmente cego quanto à verdadeira natureza desses personagens.
Amparo natural: A Estrela e a prostituta (Alice Braga) vendo a chuva com a pele.
O caos que se instala na cidade anônima é o mesmo da cidade invisível em que atuam os arcanos do tarô. Um mundo de possibilidades num só olhar. Daí a importância da advertência escolhida pelo grande Saramago no espaço inicial da obra, retirado do Livro dos Conselhos de El-Rei Dom Duarte. Mais que uma premissa a uma leitura atenta do livro, é um mandamento ao estudo do tarô em toda a sua plenitude. “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Reparar é libertar-se da superficialidade da visão para então aprofundar-se no interior daquilo que é o homem e, por fim, conhecê-lo. A cegueira é uma alegoria para a crise progressiva das sociedades capitalistas do século XX em diante, aproveitando o caráter atemporal da obra. Mostra os limites entre civilização e barbárie, rompidos pela nova ordem do todo. Pode, ainda, ser entendida como sintoma ou desencadeamento final da alienação do homem em relação a ele próprio.
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Este trabalho de estabelecer convergências entre o filme
e os arcanos do tarô, de autoria de Leonardo Chioda,
foi inicialmente postado no blog do autor em 2008:
www.cafetarot.com.br
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